sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Continuação do conto "Os meus pecados" de José Luís Peixoto


As meninas e os rapazes que ficavam nas filas da frente sabiam sempre o que haviam de dizer em todos os momentos da missa. Eu assustava-me quando toda a gente começava a falar e murmurava pedaços de palavras como se estivesse a dizer alguma coisa. Levantava-me quando via toda a gente a levatar-se. Ficava de pé e doía-me as pernas. Ajoelhava-me quando via toda a gente a ajoelhar-se. Quando toda a gente começava a cantar, eu tentava apanhar o ritmo e fazia na, na, nã. Chegava sempre atrasado. Aos domingos, a minha mãe aquecia duas panelas de água no lume da cozinha do quintal. Acordava-me no momento em que, por toda a vila, já se ouviam os sinos a tocar para a missa. A minha mãe dizia-me acorda que os sinos já estão a tocar. Eu ouvia os sinos e levana-me num salto. Chegava em cuecas à cozinha do quintal e a minha mãe já tinha a água dentro de um alguidar. Eu punha os pés lá dentro e ficava de pé enquanto a minha mãe me dava banho. Fazia o caminho de casa até à igreja com a comichão das roupas novas no corpo. Entrava devagar, sentava-me em silêncio e tentava garantir que, no fim da missa, a irmã Lúcia fazia a chamada. Nós dizíamos presente. Depois, perguntava-nos foste à missa no domingo? Nós respondíamos que sim. Quando ela desconfiava, dizia não te vi lá. Nós respondíamos fiquei nos bancos de trás. A irmã Lúcia desconfiava. Umas vezes acreditava, outras não. E repetia sempre que quem tivesse mais de cinco faltas à catequese ou à missa não iria à excursão a Fátima que iríamos fazer na Páscoa.

Entre os rapazes que ficavam comigo nos bancos de trás, havia alguns que tinham de ajudar os pais ao domingo. Iam com os pais para as hortas, ou carregavam baldes de areia, de água ou de cimento. Muitas vezes, esses rapazes pediam-me para dizer à irmã Lúcia que os tinha visto na missa. Quando toda a gente saía, depois de o senhor prior dizer ide em paz e que o senhor vos acompanhe, depois de as raparigas do coro se cansarem de cantar e depois de a irmã que tocava órgão dar as duas notas finais, a irmã Lúcia ficava rodeada pelas meninas da minha idade e pelos rapazes que se sentavam na fila da frente. Eu furava entre eles, aproximava-me como um intruso e dizia que os rapazes tal e tal tnham saído mais cedo, mas que, antes, tinham mandado cumprimentos.

Naquele sábado, enquanto esperava, eu pensava em muitas coisas. No dia seguinte, seria o dia da minha primeira comunhão. Sentado num dos bancos de madeira da igreja, olhava para o altar. Olhava para o caminhode Jesus para o Calvário, esculpido em quadros ao longo das paredes. Olhava para o olhar piedoso da Nossa Senhora, para as suas mãos estendidas, os seus dedos finos. Olhava para o peito de Jesus crucificado, marcado por chagas, por sangue, com as costelas a conhecerem-se todas, com o coração à mostra. Tentava adivinhar a história dos santos pelas suas expressões. Nenhum santo sorria. Na igreja, o fresco das sombras, do mármore, misturava-se com o cheiro das velas que ardiam. Cada ruído, um banco que estalava, um suspiro pequeno, era mil vezes aumentado pelo eco. Um rapaz saiu da sacristia. A irmã Lúcia levantou-se, olhou para mim, disse o meu nome. O meu nome ressoou no eco. Disse agora, és tu. Levantei-me devagar. Aproximei-me do corredor. Baixei o joelho, fingi que me benzia. Caminhei na direcção da sacristia. Ouvia os meus passos, lembrava-me das explicações da irmã Lúcia na catequese. Tinha oito anos, andava na terceira classe e não sabia ao certo quais eram os meus pecados.


José Luís Peixoto



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